P&B


A imagem é granulada, em pê e bê, e mostra um piano.
Alguém sentado à sua frente, tocando notas calmas. Mas a música que toca não condiz: É um filme mudo, então.
O vídeo treme duas vezes, e parece se arrumar quando pode ser vista a janela na parede aos fundos. Uma grande janela aberta, de cortinas barrocas amarradas à direita, à esquerda. À frente, o céu limpo que parece nublado por causa da (falta de) cor. O homem (de cabelos compridos, mas de casaca, então é homem) continua tocando sua música inaudível enquanto uma peça aos moldes de uma canção de saloon — bem Looney Tunes, mesmo — toma forma por cima do que quer que o homem esteja tocando.
É um ambiente soturno, esse onde o piano está. À direita da janela se estende uma estante de livros de todos os tipos, tamanhos e, supõe-se, cores. Uma fileira na última prateleira visível está recheada de uma coleção uniforme, deve ser a Brittanica. Mais para baixo, em um pedestal só dela, a Bíblia está aberta. Guardando seus lados, estatuetas de querubins que por pouco não parecem só um borrão no vídeo. Um castiçal, então, continuando a travessia dos olhos pela parede dos fundos, apagado mas carregado de pontinhos brancos que só podem ser velas. Qualquer outro detalhe é sumariamente esquecido pela má definição da película.
Na janela, um ponto preto se desloca com calma. Dele saem pontos pretos que parecem um trecho do granulado que ganhou vida própria. O homem para de utilizar o piano (a música continua) e, com as mãos no bolso da casaca, se levanta e vai à janela. Uma sombra vai ao lado dele, vindo de onde a câmera se localiza, e logo se mostra como uma mulher de vestido rendado e cabelos como os do parceiro, cujo braço agarra com medo (pois treme; ou será só o vídeo ruim?).
Ambos à frente da janela quando um tremor sacode a câmera e a tomba para a esquerda, à altura do chão. A imagem, indecifrável por segundos, ainda sobrevive, mesmo que torcida em noventa graus, e mostra um bom trecho do chão e o casal à frente de um pouco de janela. A visão de um inseto caído, talvez. É visível o nariz da mulher chafurdando no ombro do homem, como que para não ver o inegável. Um movimento do braço direito dele entrega algo a ela, e logo pode-se ver o lenço que ele a deu para enxugar as lágrimas ou assoar o nariz, é difícil dizer.
A música segue.
Mais um tremor e a câmera só pulula. Quando se torna estável, o casal está correndo pelo cômodo, parecendo pegar os pertences mais importantes (seria o quarto deles?) e, desajeitados, fogem com cubos irregulares de roupas nos braços. Segundos após, voltam escoltados por policiais.
Escoltados? Violentados.
Policiais? Soldados.
São jogados ao chão, com fuzis apontados para suas cabeças. Dois desses policiais-soldados (homens de farda e arma, de qualquer maneira) tombam o piano para frente, e o estrondo no assoalho faz o vídeo vacilar. O fardado-chefe, o que parece ter mais pontinhos dourados na farda, acerta o rosto do homem com seu fuzil. Uma, duas vezes. Aponta para a mulher e parece tentar enfiar o cano da arma em sua boca. Desliza-o pela renda, começa a sorrir com uma boca arreganhada, doentia demais, e começa a distribuir dedos de ordens para vários outros fardados atrás de si.

Mais um tremor, o vídeo parece terminar por um segundo.
Ele volta; a música demora alguns silêncios para seguir.

O casal está sozinho no cômodo mais uma vez. A mulher, abraçada à lateral do piano, está nua e sua imagem treme, os joelhos fraquejando, prontos para desabar. Seu parceiro está no chão, com o peito descoberto e alvejado de pontos escuros que se transformam em poças logo abaixo, estendendo a casaca como uma sombra prestes a levá-lo às trevas. A viúva se ajoelha, a meia-calça à altura das canelas igualmente manchada de sangue, e convulsiona à frente do corpo inerte.

A imagem é cortada junto da música.
Flashes horrendos surgem no vídeo, com o som original da película. O grito desesperado e choroso da mulher ecoa quando é visível (por poucos milésimos) um fardado espremendo sua cabeça contra o piano. Outro flash mostra os tiros à queima-roupa no homem, que estremece com o impacto. Vômito de sangue, um urro nos alto-falantes. A mulher sem roupa, violada por duas mãos de fardados diferentes. Granulados pretos escorrem por suas pernas. O homem jaz acabado à frente do vídeo, ainda sendo pisoteado no rosto pelo chefe.
Escuro. Só os gritos da mulher sobrevivem no vídeo, gritos que parecem a cada momento mais altos e desesperadores. A própria mente começa a maquinar flashes do estupro: As mãos, o sangue, os tapas, as roupas, as risadas. A tortura auditiva segue até as vozes masculinas cessarem o escárnio e só um lamento solitário e indigno sobrar. Um zumbido abissal, a voz profunda de quem morre em vida.

Silêncio.
Três segundos, três silêncios.
Palavras em russo e alemão aparecem na tela, tremendo pela má qualidade.
Uma suástica.
O vídeo acaba.

Fonte: Mínima Ideia

Nenhum comentário:

Postar um comentário

TOPO